Em julgamento realizado na cidade de Canoas (Região Metropolitana de Porto Alegre), uma técnica de enfermagem de 40 anos foi condenada a 51 de prisão em regime regime inicial fechado, em processo alusivo a nove tentativas de homicídio contra bebês recém-nascidos. A sentença considerou como agravantes o uso de substância análoga a veneno e o fato de as vítimas serem crianças.
A ré pode recorrer da sentença em liberdade. Em outros dois casos semelhantes, foi absolvida por falta de provas ou teve a acusação desqualificada para lesão corporal. Os fatos foram registrados no Hospital da Ulbra, durante o horário de expediente da profissional – os fatos são do período entre 5 e 12 de novembro de 2009.
Conforme denúncia do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), a técnica de enfermagem ministrou medicamentos controlados aos bebês, incluindo morfina, sem ordem médica, assumindo assim o risco de matá-los. Eles apresentaram problemas respiratórios, convulsões e precisaram de internação em unidade de terapia intensiva (UTI). A mulher foi presa em flagrante após a Polícia Civil encontrar seringa e fármacos suspeitos em seu armário.
Durante o processo, a enfermeira permaneceu em prisão preventiva por quase um ano e foi alvo de perícia médica para apurar possível insanidade mental. O Instituto Psiquiátrico Forense (IPF) considerou a mulher semi-imputável, por apresentar perda parcial da compreensão da conduta ilícita e da capacidade de autodeterminação. Em interrogatório, a investigada admitiu ter utilizado uma seringa para ministrar os medicamentos (pegos no hospital) diretamente nas bocas das crianças:
“Eu sabia o que estava fazendo, mas não conseguia parar, mesmo sabendo que aquilo era errado. Mas nunca virei as costas para nenhum dos bebês”, declarou, mencionando o fato de ter auxiliado na prestação de socorro às crianças que ela própria havia atacado. Ela também alegou desconhecer, na época, que sofria de transtorno mental. Em outra parte da oitiva, a ré mencionou episódios ocorridos durante sua infância e adolescência, incluindo abuso sexual, automutilação, fugas de casa e uma tentativa de suicídio.
Acusação e defesa
Diante de um júri (formado por três mulheres e quatro homens), a acusada relatou ter sido diagnosticada em 2017 com a “síndrome de Mushalzen por procuração”, comportamento em que o pai ou mãe inventa doenças para o filho. Esse trauma teria levado a técnica de enfermagem a reproduzir esse tipo de projeção nos bebês aos seus cuidados, concluiria o psiquiatra responsável por seu acompanhamento durante o processo criminal.
Arrolado como testemunha de defesa, ele detalhou o tratamento e o tipo de problema envolvido: um transtorno de personalidade do tipo impulsivo e instável, com dificuldade de conter impulsos. “Embora a ré tenha capacidade de entendimento, não possui capacidade de se autodeterminar”. A avaliação diverge do laudo do IPF, que apontou que ela seria parcialmente capaz de determinar-se, o depoente avaliou ser a ré plenamente incapaz.
Também sentaram-se no banco de testemunhas o marido da ré e sua ex-chefe no hospital, além de um policial que investigou o caso na época. Por fim, falaram duas mães de crianças que quase morreram dopadas naquela ocasião.
O promotor Rafael Russomanno Gonçalves enfatizou o laudo do IPF e acusou a ré de ter assumido o risco de matar, o que caracteriza crime doloso contra a vida (assumir o risco de produzir o resultado):
“Aqueles medicamentos têm lacre, rótulo… ela sabia o que estava aplicando, tanto que todos os bebês tiveram os mesmos sintomas: ficaram moles, roxos, sem ar. Eles estavam na UTI enquanto ela continuava praticando os crimes. A gente não pode minimizar o que aconteceu. Ela sabe que está errada e que podia ter agido diferente”.
Já o advogado da ré, Flávio de Lia Pires, defendeu a absolvição nos casos relativos a seis das 11 vítimas. Ele disse não ver elementos que indicassem substâncias no organismo de todas as crianças com os sintomas relatados. Também argumentou que a ré tem 12 transtornos mentais e que, portanto, precisa de tratamento médico e não de prisão:
“Precisamos entender que não se tratou de ato voluntário. No momento em que ela praticava as condutas não tinha condições de se autodeterminar. Não conseguia conter os seus impulsos. Agiu fora da realidade. Nunca teve comportamento dentro da normalidade. Colocar uma pessoa doente num sistema penitenciário é errado. Ela tem condições de viver em sociedade, desde que esteja tratada”.